COLCHÃO DE PALHA
COLCHÃO DE PALHA
José Carlos Buch
A casa, como todas do bairro, não tinha forro, de sorte que o barulho da chuva se fazia ameaçador, principalmente quando acompanhada de ventos fortes. Nos temporais, recorria-se como proteção à queima das palmas de Santa Barbara, normalmente guardadas atrás da moldura da Santa. As crianças assustadas eram abrigadas sob a mesa da cozinha. Quando muito intensa, além das goteiras, a chuva penetrava entre o vão das telhas e chegava a molhar toda a casa de piso de cimento pintado de vermelhão encerado. Na cozinha, o fogão à lenha com a chapa sempre quente mantinha aquecido o bule de alumínio de café e, perto dali um guarda comida que hoje é encontrado em muitas lojas de antiquários e presente em alguns restaurantes temáticos. A mesma chuva que assustava as crianças e preocupava as mães, que rezavam e pediam a proteção para que nada de ruim acontecesse, inundava a rua provocando uma enxurrada de água barrenta sempre mais abundante do lado norte do meio fio, onde provocava maior erosão. Bastava pouco mais de um hora de chuva torrencial e o córrego fundo, como é conhecido até hoje, se agigantava transbordando e levando rio abaixo tudo que encontrava pela frente, deixando um rastro de barrancos desmoronados e moitas de capim deitadas. Quando a chuva diminuía, crianças se divertiam caminhando na enxurrada e brincando descalças com a água acima do tornozelo e cabeça molhada qual pintainho. Em pouco tempo tudo passava, sobravam apenas as ruas sem pavimentação totalmente esburacadas por onde se podia transitar apenas de bicicleta ou com charretes e carroças puxadas por tração animal e, ainda, os telhados a serem reparados. A chuva que hoje está vindo a conta gotas, obedecia o seu ciclo natural e sempre estava presente a partir do dia de finados. Esse era o prenúncio de que o ano seria bom e a colheita farta. Se, com tudo, a mesma chuva marcasse presente em meados de agosto perto da florada, era sinal que a produção de café seria melhor ainda. À noitinha, enquanto os mais velhos punham a proza em dia sentados nas cadeiras em círculos na calçada de grama, as crianças brincavam na rua — os meninos de pique salva e as meninas de “passará ou não passará, algum deles há de ficar”(lembram-se?) –. Os que tinham rádio, verdadeiros caixotes de madeira envernizada, sintonizavam as rádios de São Paulo(Nacional, Tupi, Bandeirantes) para ouvir programas de músicas caipiras(as autênticas) e, sem essa de universitários(que nunca terminam a faculdade!). Antes das nove, todos se recolhiam. Era a hora de descansar o corpo na cama patente, travesseiro de paina(colhida diretamente da enorme paineira) e no colchão de palha. Sim, palha seca desfiada de milho que, não só amoldava ao corpo, como ajudava-o a ficar aquecido nas noites de inverno. Ao menor movimento a palha denunciava com o barulho que era provocado pelo atrito duma na outra. Arrumar a cama ao acordar era tarefa simples, bastava movimentar as palhas e o colchão voltava a ficar encorpado. Com o tempo esse mesmo atrito produzia um pó que, nos dias de hoje levaria qualquer um, principalmente as crianças ao pronto socorro, com crise alérgica. Então era necessário remover o pó e substituir as palhas fragmentadas e detonadas, por outras mais novas. Anos mais tarde, esses colchões de palha foram cedendo lugar para a novidade da época, que eram os colchões de crina vegetal que, na verdade era uma espécie de fibra obtida com as folhas do butiazeiro e que fazia lembrar um capim grosso. Apesar da evolução, esse tipo de colchão não era nada macio e confortável. O reinado desses colchões não foi muito longo e, no final da década de cinquenta começaram a aparecer os primeiros colchões de mola, totalmente diferentes dos que são encontrados nos dias de hoje em lojas existentes praticamente a cada esquina. Na verdade, possuíam molas espirais e uma densa camada constituída de uma manta que lembra a estopa, sem qualquer critério quanto à dessimetria. Não existia crediário e esse tipo de colchão era privilégio da minoria, que os encomendava em colchoarias e casa do ramo. Com o surgimento dessa inovação, as colchoarias passaram a fabricar, também, sofás cama(um luxo!). Nas varandas das casas, era comum encontrar uma carruagem afixada e decorando as paredes, confeccionada em lâmina de madeira e pintura em preto. Também não podia faltar o pinguim sobre a geladeira branca, eletrodoméstico que também era privilégio de poucos. As pessoas no bairro dormiam cedo e acordavam igualmente cedo. Antes das seis horas a maioria dos trabalhadores e donas de casas já estavam de pé para iniciar mais um dia. Trabalhava-se de segunda à sábado, que era o último dia útil da semana. Muito tempo depois, com a chegada da chamada “semana inglesa”, o trabalho da semana passou a encerrar-se nos sábados por volta da uma hora da tarde. Não tinha essa de oito horas diárias e nem carga horária de quarenta e quatro horas semanais. O trabalho iniciava-se às sete horas e, invariavelmente terminava às dezessete, com uma hora de intervalo para o almoço. Nos fins de semana, a opção era ir ao cinema(Bandeirantes ou República) ou ao footing da Praça da República, com direito a comer bauru e tomar garapa no bar do Orestes, usando os ônibus da Viação Paulista, a primeira empresa da cidade a prestar o serviço de transporte urbano e que assim o fez por longos anos. Muitos preferiam permanecer na periferia mesmo, onde num ou outro bar o bilhar atraia os jovens e campo de bocha ou a mesa de truco os mais velhos. Também eram muito comuns bailes aos sábados ao som de sanfona, pandeiro e violão, em barracas improvisadas, sem contar a quermesse anual para ajudar na construção da igreja, tendo o Guilhermão(inimitável) como leiloeiro. Até as doenças, nas conversas de nossas mães, tinham outros nomes: vento virado(provocado por um susto e causava até diarréia nas crianças de colo), espinhela caída(dor de estômago), nó na tripa(cólica de intestino), cobreiro(mancha na pele), quebranto e mal olhado, que deixavam as crianças entediadas, mas quase todos eram resolvidas com benzimentos. O que mais matava as pessoas à época era um tal “de repente”, entretanto, muitas doenças hoje curáveis abreviavam a vida de muitos. As necessidades de consumo eram literalmente outras e, a inocência e a pureza reinavam entre as pessoas marcadas por longas conversas entre os vizinhos, muita solidariedade e até socorro com uma ou outra falta(sal, açúcar, arroz, feijão, ovos), para o almoço ou jantar, quando não havia tempo de buscá-la na venda. Todos eram conhecidos pelo nome e assim eram identificados e principalmente tratados, já que ninguém precisava de CPF para ser rotulado de contribuinte e monitorado pelo estado. Mais de cinco décadas se passaram e, quem conviveu com aquela época costuma dizer que a vida naquele tempo era melhor, mas, que não sente saudade alguma da lamparina ou lampião iluminando a casa, nem tampouco do rádio a bateria, também conhecida como acumulador, que oscilava lembrando o som de uma cachoeira e, principalmente do bucólico colchão de palha, que dorme apenas na memória de muitos, mas é impensável nos dias de hoje.
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